Cidades de açúcar

Por Assuero Gomes // Médico e Escritor

O açúcar, verdadeiro ouro branco, riqueza primeira deste Brasil chamado Pernambuco, que construiu cidades, domesticou feras, domou florestas e espaços inóspitos, que acordou a cobiça de povos, que escravizou corpos d’África, que dizimou índios, que ergueu monumentos, sacrários, civilização.

Alvo mel em pedaços e em pó fez a fortuna de poucos e a desgraça de muitos. Procurou caminhos rio a dentro, povoou margens, elevou belas igrejas, importou arte e artistas, e invasores. Casarões e senzalas, cantos e lamentos, batuques e festejos, açoites noite a dentro, encantos e assombrações, sinhazinhas e escravas marcadas em brasa.

Açúcar que patrocinou uma das manifestações mais ricas da cultura do Brasil e sua culinária maravilhosa (aqui um registro à primeira dama da culinária pernambucana, D. Lectícia Cavalcanti) com especial atenção às suas doces iguarias; açúcar que permitiu aos sinhozinhos estudarem na Europa e se fazerem mestres na arte e no ofíciodo direito e da medicina, foi também o açúcar e seu monopólio agricultural que cavou um abismo de distribuição de renda, até hoje intransponível, e que reflete no dia a dia desta parte da nação; e foi o açúcar de Pernambuco que fez acontecer uma coisa de arrepiar os sociólogos que ousem estudar nossa história e nosso comportamento social. O casamento da aristocracia canavieira em decadência com a emergente burguesia comercial e industrial, concentrando mais ainda a riqueza, queimando uma etapa de luta e evolução social, e praticamente esmagando quaisquer possibilidades de organização e mobilidade das classes de trabalhadores rurais sem nenhuma propriedade ou bem de produção e a classe do proletariado urbano.

A cultura da cana de açúcar criou cidades entre antigos engenhos e perto das usinas. Cidades de açúcar com casas de açúcar, praças de açúcar, ruas ribeirinhas sem traçado urbano, sem esgoto, sem drenagem. Cidadania de açúcar. Cidades bonitas, de doces folguedos para os filhos dos senhores que vinham de férias da capital, cidades banhadas de cachaça entre uma safra e outra, entre uma esmola e outra, ou um par de sandálias em novembro.

O açúcar é doce, porém derrete. E as casas se foram, e as ruas se foram, na primeira chuva. E o doce se esvaiu como uma lembrança fortuita. Como um algodão doce que se vai à primeira saliva. Ficou apenas o melado acre e marrom. Ficaram a dor e o futuro que não houve. Ficou o massapê onde a cana soberana é senhora de homens e animais, esparramado como a cobertura de um bolo chorado, onde havia casas e ruas, e poucas escolas e poucos postos de saúde. Ficou a frágil cidadania na lama feita com os registros civis, processos, anotações notariais. Ficou o barro, donde se nasciam com arte os bonecos, bois, cavalos, feirantes, santos, todos os santos.

Há, porém, algo mais doce que o açúcar, mais perene e mais belo, é a solidariedade. Essa brota como uma fonte silenciosa e vai penetrando no coração das pessoas, e vai mudando suas vidas na medida em que elas mudam a vida dos outros. Acolher, cuidar, alimentar, agasalhar, saciar, são palavras brotadas da fonte da solidariedade, na construção de um mundo mais justo, onde a cobiça cede à fraternidade, onde o facão é transformado em arado, o açoite em carinho, a boia fria em refeição partilhada de irmãos e irmãs, iguais em direito e dignidade. Essa a chuva não derrete, nem a correnteza destrói.

 

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